Atualidade e permanência em O círculo de giz caucasiano

Resenha | Renato S. M. *

O círculo de giz caucasiano, do escritor alemão Bertolt Brecht, peça teatral publicada em 1944, com a tradução do poeta Manuel Bandeira para o português brasileiro, apresenta uma disputa de um território (um vale) entre dois povos e em seguida destaca a história de uma mulher que toma para si uma criança e, mesmo sem ser a mãe biológica, busca proteger o filho de circunstâncias que a colocariam em risco. Risco de morrer, inclusive. Os dois casos ilustram situações que se podem perfeitamente questionar: a condição da figura social de mãe (progenitora) e o direito real de posse de uma propriedade de terra, observados os seus respectivos contextos.

Imagem de reprodução

Tratemos de uma peça reconhecida na dramaturgia ocidental, composta por um prólogo e cinco quadros, sendo cada um deles interligado com o outro e sugerindo uma sequência que culmina no fechamento de um círculo ou desfecho de uma história dramatizada. É expressivo o último quadro ser nomeado de “O círculo de giz”. A peça posta dentro da peça, com cinco quadros, após o prólogo, reforça uma ideia de que se ela tivesse quatro quadros quem sabe pudesse evocar a imagem de um quadrado. A estrutura de O círculo de giz caucasiano também nos leva a pensar ainda em algumas considerações. Por exemplo, a representação de círculo associada ao cenário de um vale cercado por montanhas retratadas. Pode-se extrair desta representação a imagem de um grande anfiteatro, uma herança histórica do teatro de arena, típico da Antiguidade e caracterizado por um formato oval ou circular rodeado de degraus a céu aberto. Ao (re)afirmarmos, assim, a existência de uma peça dentro de outra peça, daremos sentido a uma concepção de um círculo e dentro dele um objeto de figuração.

Analisemos o prólogo, que bem cumpre um sentido projetado. Dicionarizado, o termo remete ao antigo teatro grego. Prólogo, a primeira parte da tragédia, em forma de diálogo entre personagens ou monólogo, na qual se fazia a exposição do tema da tragédia. Brecht parece reinserir este elemento de tradição artística com alguns aspectos vinculados à sua forma de fazer teatro. Como teria que ser, a peça começa com a definição de um cenário e a apresentação de personagens, que ganham tons político-brechtianos pelas caracterizações de personas “à esquerda” e “à direita”. As figuras de um mediador, o Delegado, e de um narrador, o Cantor, seriam outras invenções discursivas do escritor alemão. Interpreta-se a ideia de que ele busca apresentar uma peça em que o contexto dela não fique distante do olhar de quem a lê ou assiste.

No caso, podemos perceber o prólogo formulado como uma espécie de ensaio e abertura para o que vem a seguir: a dramatização da criada Grusche e do menino Miguel. Temos o Delegado em reunião com membros de dois povos que disputam o direito de posse de um vale, em um período pós-guerra e em território possivelmente russo. Um dos povos quer retomar a terra que lhe pertencia antes da guerra. As tratativas se estendem para uma tentativa de acordo. Acontece de um dos povos propor a encenação de uma peça, em convite formalizado pela figura de um cantor que vai se comportar como um elo entre duas realidades, mantendo o que podemos chamar de mesma máscara. O cantor se traveste de trovador medieval ou de aedo, artista da Grécia antiga que cantava as epopeias acompanhando-se de um instrumento de música. Veremos que além de cantar e tocar instrumento, o cantor, um notável narrador brechtiano, vai participar da dramatização e também comentá-la. Será o cantor quem vai apresentar a peça dentro da peça. Ele assim o faz. Surge, então, o quadro 1, intitulado “A augusta criança” (“O menino de alto berço”, em uma dada edição desta obra).

No primeiro quadro, temos a citação das figuras do Governador, a Mulher do Governador, a criada Grusche (ou Grucha), o menino Miguel, o soldado Simon (ou Simão Chachava), Príncipe Gordo e uma horda de cavalarianos (ou cauraceiros), que vão capturar e derrubar um soberano de um poder autoritário constituído, degolando-o. Basicamente, este quadro vai dar as diretrizes para os seguintes, a partir do momento em que a Mulher do Governador, já viúva, se percebe em perigo com a iminência de invasão de seus aposentos pelos cavalarianos e seu líder Príncipe Gordo. A Mulher do Governador, escoltada pelo soldado Simon, foge do palácio sem levar consigo o filho Miguel. Sobra para a criada Grusche a missão de ficar com a guarda da criança, antes que esta caísse literalmente nas mãos dos rebeldes. Em um primeiro momento, aliás, a criada salva a criança. Ela escapa do palácio com Miguel nos braços, em direção a um vale. Grusche sai de uma cena e entra em outra: “A fuga para as montanhas do norte”, o segundo quadro. A partir de então, a relação entre criada e criança se estreita.

A dramatização se desenvolve na sequência dos quadros II, III, IV e V, em torno da figura maternal de Grusche, que se esforçará para salvar a vida de um nobre inocente. Pode-se dizer que quanto mais a criada se dirige às montanhas do norte, ela expõe com exemplos concretos a sua condição de pessoa com caráter elevado e altivez humana. Aliás, é notável – fazendo aqui uma alusão à imagem de um círculo – a sensação de um conjunto de metáforas em torno da peça. Em caso específico, da peça dentro da peça, teremos a condição de uma mulher na condição de símbolo de resistência e de amor maternal. É a criada que se ocupa de alimentar Miguel, após muito perambular pelo vale com a criança em colo. É a criada quem vai procurar abrigo quando a noite e o cansaço surgem. Para ter um teto onde morar e proteger o menino de uma captura e condições adversas, a criada vai se prestar até a um casamento inventado. Grusche descumpre a promessa feita ao soldado Simon, com quem havia se comprometido. Os dois, no entanto, se reconciliariam e serão vistos juntos no momento em que a figura controversa de Azdak vem à tona, no quadro de número quatro.

“A história do juiz” será a da Justiça, que pode ser metáfora de um retrato social. Asdak é um corrupto confesso, cobra abertamente por sentenças. O Judiciário apresentado é um verdadeiro balcão de negócios. Provocado à comunicação, Asdak faz, inclusive, comparações entre a posição social de um juiz genérico com a de um médico. Até o médico cobra por seus serviços, por que ele, Asdak, não poderia cobrar? Mas é bom que se diga: o juiz parece se interessar mais em cobrar de quem pode pagar – o que lhe faz de algum modo um Robin Hood. Tal figura vai julgar o caso de Miguel, tomado de Grusche. A criada irá brigar pelo direito de guarda da criança com a Mulher do Governador, a mãe biológica. Caberá ao controverso representante maior do Judiciário decidir com quem ficará o menino, que é posto em um chamado círculo de giz caucasiano. Parafraseando o conto do Rei Salomão, o juiz ordena que cada mãe pegue em um dos braços da criança e a puxe. Aquela que conseguisse tirar o menino do círculo ficaria com ele. Grusche, a mãe adotiva, se recusa a puxar a criança pelo braço e a sua conduta seria o argumento para que Azdak proferisse sentença em seu favor.

O destino sugerido de Miguel vai se configurar o mesmo da terra em litígio. As duas imagens servirão de alegorias para a defesa de um ponto de vista ético semelhante: a mãe, de fato, é aquela que cria e dá carinho, proteção, não necessariamente aquela que engravida e coloca o filho no mundo; e o dono da terra no vale, de fato, seria aquele povo que usufrui e a cultiva e dela retira a produção para o seu sustento. Em outras palavras, podemos perceber presença de atualidade e permanência na obra de Brecht: a consanguinidade como critério de vínculo entre pessoas e a questão fundiária, que acompanham a história da humanidade ao longo do tempo e que chamam a atenção por suas respectivas problemáticas e simbologias universais.

* Renato S. M. é jornalista, professor, editor e pesquisador em Literatura. Também se diz escritor, admirador das obras de Fiódor Dostoiévski e interessado em ditos autores malditos e marginais.

Contato: editoraeliber@gmail.com

(Crédito da imagem de destaque: Reprodução)

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