Conto | Natacha Alana*
Parecia ser um aneurisma, ela teria caído da cama e fraturado o pé? Depois de uns dias, pude visitá-la no leito semi intensivo; um funcionário me indicou onde ela estaria e não a achei; vi um bicho pútrido, uma coisa inchada, parecia um sapo morto que apodreceu no lodo; aí vi as suas unhas pintadas e decoradas com pequenas flores e reconheci a minha tia.
Fui e fugi, era início de janeiro e já estava com uma viagem marcada para Trancoso. Só queria ficar numa boa na praia – bonita de biquini, gostosa, maravilhosa e como minha família me incentivou a viajar, que aqui eu não poderia fazer nada mesmo. Fui e perdi o enterro com gosto. Já em fevereiro, alguém disse numa fofoca que ouviu falar que o delegado iria indiciar meu primo pela morte de sua mãe, que era caso de espancamento; feminicídio, e como ninguém da família se assustou de verdade com isso… – meu primo era bicho bruto, agressivo e tosco; fugia a regra do mundo.
Quis me inteirar de tudo, li todo o inquérito, li todos os testemunhos, conversava insistentemente com delegado, com os agentes. Devorava qualquer coisa referente ao caso, era o meu pão diário. Via as fotos da necropsia, o cérebro aberto, exposto, desintegrado, as manchas e tons alaranjados, esverdeado e enegrecido, e a conclusão: morte violenta por objeto contundente na face. Me lembrei de um candelabro, feio e pesado, imitação ruim de cobre e de um filme romântico italiano e que ficava sob uma mesa da entrada do apartamento de Eunice; me lembro, assim disse para o delegado: meu primo matou minha tia com esse candelabro.
Conforme o delegado do caso, o inquérito tinha materialidade e autoria, porém se ancorava com predominância nas palavras das testemunhas, e nesse caso eram péssimas. Parecia fofoca e percepções individuais sobre uma relação ruim de mãe e filho.
O primeiro promotor do caso era um desleixo só, nitidamente preguiçoso e falastrão, dizia que o Júri era uma condenação certa e pediu uma preventiva de Tiago. Soubemos do caso pela pior maneira possível: pela TV.
E toda aquela baixeza, toda mídia ficava horas falando. Um jornalista de um canal barato filmava bem o rosto dele, e dizia que sentia nojo, que era caso de pena de morte, que não teria perdão.
Saiu num jornal impresso sanguinolento a seguinte manchete: “Filho mata a mãe por mesada” e uma série de mentiras e coisas sem nexo só para vender mais.
A prisão, que foi preventiva, nem respeitava os critérios técnicos, e como o advogado do Tiago era o próprio pai, foi sinônimo de “defesa alguma”, inútil, cheia de jargões jurídicos e pobres.
Nesse período, uma parente espírita entrou numa obsessão de vender o apartamento da Eunice. Era numa área nobre; como ela falava nisso, comentava com todos, que já tinha visto advogado, já sabia o valor, que dividiria com a família e como eu tinha certeza que ela mesma – esta parente – mataria a Eunice por aquele apartamento.
A forma como as pessoas foram abandonando o caso, vivendo as suas vidas… e ficou só eu. Eu ia sempre ao Ministério Público, implorava às testemunhas para irem ao Júri. Implorava a todos. Fui me ressentindo, me amargurando, fui criando culpa. Eu era só culpa, como deveria eu ter sido uma sobrinha melhor, falado menos, ter sido atenta às sutilezas. Talvez saberia o que acontecia naquele apartamento, talvez minha tia poderia ter se aberto comigo? Como envelheci, como abandonei meu namorado por achá-lo sempre muito equilibrado, muito calmo. Ele, que me dizia para pensar menos, me importar menos; eu odiava a sua cara tranquila, sem uma ruga de nada e nem mesmo preocupação.
O primeiro promotor do caso foi afastado, um segundo nem apareceu e o terceiro, por fim, era bom.
Nessas marcações e desmarcações de Júri, encontrei Tiago, uma vez. Com aquela roupa branca de cárcere. Como ele chorava, e como eu queria lhe dar o perdão, dizer para ter paz, que estava tudo bem. E nas nossas confidências de filhos únicos na infância, como dizia dos abandonos da mãe, de como fez uma cicatriz feia na mão tentando cozinhar sozinho. E minha tia merecia aquilo, minha mãe também merecia, ela me deixava só, levava homens feios pra casa e trepava e gemia; e eu escutava tudo e ia nutrindo ódio.
Eu trocaria de lugar contigo, Tiago. Continuaria lindo, livre, desbocado e dizendo em público com quantos já tinha dado o cu. A minha vida era só farsa, e como queria poder voltar atrás e mudar tudo?
O terceiro promotor, um competente, era o tipo de gente entusiasmada com tudo. Pesquisava horas, falava com vários médicos e chegou à conclusão óbvia que não tinha certeza de uma condenação. O doutor me disse pessoalmente: que não seria possível levar o caso a Júri com a possibilidade de perder. Pediu arquivamento, disse à família que não poderia seguir adiante com o caso, só por achismo, e que aquilo era coisa de mãe ruim e filho ruim.
Me senti muito bem, ele ficava de cinismo, com deboche, de sorrisinho faceiro e dizia aos outros que a justiça divina não falhava, que de Deus não se zomba… mas se existe alguma divindade acima de nós, é ela que está zombado dessa podridão terrena.
Mês de janeiro agora uma parente veio me falar que soube por alguém que Tiago estava doente, coisa de usar fraldas e esse parente falava tão feliz, os olhos brilhavam, falava da lei da semeadura, que aquilo que o homem semear, também colherá, do amor de Jesus, e eu ria, por dentro, eu gargalhava.
Ria desse senso cristão e de como causa bem-estar em quem acredita. E eu queria poder acreditar nisso. Fugi novamente para o sertão, para as conversas bobas e até vazias de Diadorim e Riobaldo, na descrença de Satanás. Nas margens melancólicas do Velho Chico. No esquentar e esfriar da vida, nas horinhas de descuido.
E como eu sentia saudades, saudades de tudo. Na enorme casa velha da tia Eunice, naquele lugar sem árvores que deixava minha vista ardida, na imensa casa de pobre toda remendada, móveis feios, coisas antiquadas e piso trincado. A casa cheia de gente; acho que era um churrasco e como apareceu um rato e todos gritamos e ríamos. Ah, e como o Tiago esmagou o rato entre a janela, e como eu peguei uma sacola e botei o bicho esmagado dentro para jogarmos num terreno cheio de lixo perto da casa velha, e chegando lá estava cheio de ratos. E ríamos da barriga doer.
* Natacha Alana escreve peças processuais. Nasceu no Distrito Federal, na terra vermelha e sob sol franco. Bebe café sem açúcar. Se diz chata e ansiosa; o texto desta postagem foi originalmente publicado na coletânea Quatro cantos em contos e crônicas do Brasil (E-Liber, 2021).
(Imagem de capa: ilustração/reprodução)
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Ficha técnica:
Nome: Quatro cantos em contos e crônicas do Brasil.
Organização: Aléxis Góis, Renato S. M., Tainara Quintana da Cunha.
Editora: E-Liber.
Tamanho: grande tradicional e de bolso.
Ano de publicação: 2021.
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