Resenha | Tainara Quintana da Cunha *
“Os elos que nos unem são delas”. No verso de abertura de Elos e Elas, poema-título do segundo livro de Saulo Rodrigues de Carvalho, o poeta sintetiza a atmosfera da obra. A redoma dos amores e dos afetos se tece em verso livre, tal como a própria teia da vida, no âmago do eu que às vezes dói, às vezes dança, às vezes encharca-se de lágrimas e, num instante, volta a sorrir, ao sabor do destino que lhe cabe fiar.
A re(l)ação entre os seres chamados aos versos marca a conexão umbilical entre o eu poemático e as mulheres evocadas tal como forças pungentes de vida, ou musas inspiradoras da arte de poemar. Elas representam o feminino na essência da obra literária que lhes homenageia. Trata-se de criaturas que, em surdina, transplantam o olhar do eu lírico para a dimensão em que tudo é descoberta, arrepio, alumbramento, desvelo, admiração.
Delas são as vozes que ecoam na liberdade das palavras e dos versos. Por vezes nomeadas – “Larissa”, “Ana Luíza”, “Helenira” – noutras simplesmente evocadas como “Mamífero” – mãe – mulher, aparições transmutadas em sinestesia. Elas se embrenham no emaranhado nebuloso entre inveja e gratidão, numa alusão à obra homônima de Melanie Klein para quem o seio materno, parte da mulher-mãe e símbolo da própria feminilidade, é objeto nutridor da vida ao mesmo tempo em que, aos olhos do infante que dele se alimenta e depende a sobrevivência, encarna um misto de necessidade e repulsa.
Afora o viés psicanalítico, não bastasse o culto à essência fundacional de todo feminino, há o amor, essa forma primitiva, demasiado humana e pungente das emoções. O amor doce “com bomba de chocolate”, sensual num “Quarto sem sol” e aqueles “Amores amargos”, eco longínquo das escrituras bíblicas, da religiosidade, marca de amores ausentes, resignados, traídos.
E há o tempo, a inexorável passagem do tempo em que nada escapa à decrepitude, tanto menos as memórias presentificadas por aquele para quem o poema parece ser o recurso último no expurgar das emoções que lhe vão pelo íntimo. O tempo do nascimento, da maternidade, do ondular das marés, da maturação e esfacelamento dos amores.
Nas temporalidades entrecruzadas pela recuperação mnemônica do eu, o autor de Sobre as coisas inúteis marca a afetividade gestada nas paixões, amores, carícias, decepções, frustrações, sentimentos pisados na massa funda do tempo, o mesmo tempo que se encarrega de reaver a escrita-parto simbólico de toda poesia.
Em Elos e Elas, a revisita a temas banais promove a volta às “coisas inúteis”, e centraliza a poiesis uma vez mais na problemática de sua (in)utilidade, numa mistura de “Santidade poética” e “Poema com semente de fé para não se irritar com o mundo”. Poema-profissão-de-fé, leve relicário, lembrando Olavo Bilac ou, em defesa do labor escritural, não só o poeta parnasiano é chamado, mas também Gonçalves Dias – “Da tempestade”, e Kafka – “Metamorfose” evocados nos títulos quase os mesmos, não fosse a emancipação pelo ofício do artista.
Poesia uterina, visceral, seiva de vida e de sangue que, em estágio de epifania, teima, persiste e (r)existe ao (trans)formar as relações em atos simbólicos fundadores de toda sensibilidade e beleza transfigurada em arte poética.
* Tainara Quintana da Cunha é Doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Membro do Conselho editorial da E-Liber. Dedica-se à escrita narrativa e arrisca uns versos simples; o texto desta resenha foi publicado originalmente como apresentação crítica do livro Elos e Elas.
Contato: tainaraquintana24@gmail.com
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Ficha técnica:
Nome: Elos e Elas.
Autor: Saulo Rodrigues de Carvalho.
Editora: E-Liber.
Número de Páginas: 86.
Ano de Publicação: 2021.
Formato: Pocket.
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