Resenha | Mauro Nicola Póvoas *
Depois de Diários de um jornalista sem solução, Renato S. M. lança Um periodista em São José do Nortchê e outros casos, seu segundo livro. São crônicas que se mesclam a outros gêneros, como a narrativa ficcional, o diário e o relato de viagem, oferecendo ao leitor um saboroso coquetel de pequenos textos que se distinguem pela presença do riso e pelo olhar arguto sobre o cotidiano.
Conheço o Renato há alguns anos, tendo nele uma referência de alguém que é desprendido das questões materiais e da rotina, elementos que marcam a vida burguesa, o que agora pode ser visto nesse livro.
Dividido em três partes – “Um periodista em São José do Nortchê”, “De uma casa de recuperação para almas e corpos” e “In Sampa”, cada qual repartido em pequenas crônicas –, o volume traz Renato em três dimensões espaço-temporais diferentes. No final de 2014 e começo de 2015, está em São José do Norte, cidade limítrofe a Rio Grande, entre o trabalho com revisão de textos e a flânerie; em outro momento cronológico não definido com exatidão, encontra-se em recuperação em uma casa de saúde, provavelmente em Minas Gerais; já a partir de março de 2016 está na capital paulista, em meio às manifestações contrárias e favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff, rumoroso processo que será levado a cabo meses depois, em agosto.
Chama a atenção o “periodista” do título, que se contrapõe ao “jornalista” do primeiro livro, influência talvez de uma viagem ao Uruguai, “como que abandonando o símbolo de um jornalismo que eu confesso não reverenciar: bloco de notas, patrão, mito da imparcialidade, caralho a quatro”, conforme o próprio cronista se refere à certa altura.
Aliás, essa questão da referencialidade é um ponto fulcral para Renato, seja ao indicar o local onde ele se encontra no momento, seja quando se apresenta. Velar as informações, confundindo o leitor, parece ser a intenção do autor, que quer embaralhar a realidade, tão mesquinha e sem-graça. Assim, se as cidades citadas se modificam por meio de apelidos (respectivamente, em cada uma das partes: São José do Nortchê, um “cenário alteroso da geografia brasileira” e Sampa), o cronista igualmente se transfigura, enquanto autor, em Renato S. M., alusão ao romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, homenagem já palpável na primeira linha do livro, e enquanto personagem, em José Mochila ou Mochilowski, como se quisesse não participar integralmente da ópera-bufa que é a vida, senão como alguém que nunca assume devidamente o seu nome e o seu lugar no “nosso cenário de mundo” (nas palavras do cronista), até em protesto, usando, para isso, a metáfora da mochila, objeto que traz em si o desejo e a necessidade do deslocamento. A passagem a seguir resume tudo isso: “Creio que a mulher nem percebeu a expressão facial de quem luta diariamente para não engolir parte da realidade social que nos é imposta”.
Na minha opinião, a melhor das três partes é a primeira, que trata de “São José do Nortchê”, na feliz junção, ao nome da cidade, da interjeição gaúcha. Como sou natural de Rio Grande, conheço bem a pequena e simpática cidade sulina, que costeia a Lagoa dos Patos, e que contraditoriamente traz um “Norte” em seu nome. Com certeza, os dois municípios vizinhos, separados apenas por um canal, carecem de olhares literários contemporâneos e aguçados.
Em um momento de ascensão econômica, pela instauração de um polo naval, a região é capturada pelo cronista com ironia, recurso ambíguo que se apresenta como uma faca de dois gumes, já que o texto ri das peculiaridades e tipos da cidade, ao mesmo tempo em que lança um olhar terno para esses mesmos aspectos. O polo naval, como tudo que é sólido, logo se desmanchou no ar, e a dupla de cidades-irmãs caiu no marasmo socioeconômico que a acompanha há décadas, vivendo do passado, o que é sarcasticamente comentado pelo autor: “Aliás, quase todas as cidades do sul do Rio Grande do Sul são chamadas de históricas. Médias, pequenas e diminutas. São quase todas antigas. Esquecidas, decadentes, são quase todas de outra época”. Nada como o olhar do Outro, daquele que vem de fora – Renato é paulista de Tarumã –, para que vejamos a realidade por prismas diversos.
A região, na verdade, desde sempre sofreu por sua localização geográfica e por seu terreno árido, vide o relato do francês Arsène Isabelle, que em Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul (1835), ao passar pela zona aludida, ficou aturdido pela triste e desoladora paisagem das cidades do Norte (São José) e do Sul (São Pedro, depois Rio Grande), cercadas que eram por areia e mais areia… Não à toa, Renato, lá pelas tantas, aponta umas das características de “São Jose do Nortchê”, a de ser “uma cidade fincada num solo arenoso”.
Após um período na “casa de recuperação para almas e corpos”, o caráter nômade do cronista fica explícito, pois ele reaparece na capital de seu Estado natal, em três momentos distintos do ano de 2016: em 18 de março, dia de manifestações a favor de Dilma, logo após o 13 de março, em que as ruas do Brasil foram tomadas por protestos contra a deposição do governo; na madrugada de 1º para 2 de abril, em um show; e em 30 de abril, em um passeio pelo centro de São Paulo, numa tarde cinzenta.
Aqui, o contexto ideológico fraturado e conflagrado do país daquele momento revela-se com nitidez, inclusive com comentários sobre a parcialidade da mídia hegemônica brasileira, com a qual o periodista não se alinha, nem compactua. A situação política descortina-se mesmo nos momentos de descontração, como na ida ao espetáculo musical. O cronista, sempre irônico, aguça a nossa curiosidade, pois queremos saber quem é “o cantor mais prestigiado da atualidade pelas senzalas e pelas casas médias e grandes da maior cidade da América Latina!” A seguir, o nome vem à tona: trata-se de Criolo, artista que parece ser a “extensão da realidade social diretamente transplantada para o plano da música”; embora o cronista não conhecesse o cantor, fica logo impressionado pela qualidade de sua performance e das letras. No decorrer do show, escutam-se gritos na multidão: “Não vai ter golpe!” Porém, não adiantou: o golpe se consumou, meses depois.
Cabe um comentário final em torno das referências literárias, musicais e culturais de que Renato S. M. faz uso. É um arsenal de citações que indiciam as preferências do cronista, enriquecendo o livro e abrindo linhas de interpretação e comparação. O cronista é tributário de nomes importantes da literatura e da cultura, como Honoré de Balzac, Thomas Mann, George Orwell, Gilberto Freyre e Luiz Antonio de Assis Brasil, mas também rende homenagem a grupos e cantores do pop/rock nacionais e internacionais, como Engenheiros do Hawaii, Chico César, Pink Floyd, Led Zeppelin e The Smiths, sem esquecer Mafalda, a imortal personagem criada pelo argentino Quino.
Há uma aproximação, de forma mais oblíqua, a Lima Barreto, João do Rio, Plínio Marcos e João Antônio, escritores-padrinhos do cronista, e que, como ele, acreditam na transformação social, lutam contra a homogeneidade de pensamento e lançam um olhar sobre os desvalidos. Paralelamente, escrutinam a sua própria condição no mundo, desvelando “a alma encantadora das ruas” (título de um livro de João do Rio, citado por Renato) ou internando-se em um estabelecimento médico para recuperar o espírito e o corpo exaustos e/ou enfermos.
E também nós, os leitores, podemos procurar conforto e alento nestes casos bem-humorados, críticos, perspicazes e poéticos, contados por alguém que conhece o Brasil de cima a baixo, podendo, assim, trazer muito do que viu e vivenciou em suas andanças.
* Mauro Nicola Póvoas é professor de Literatura da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
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Ficha técnica:
Nome: Um periodista em São José do Nortchê e outros casos.
Autor: Renato S. M.
Editora: E-Liber.
Número de Páginas: 240.
Ano de Publicação: 2021.
Formato: Pocket.
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