Resenha | Tainara Quintana da Cunha*
Quando, segundo Alfredo Bosi em sua História concisa da literatura brasileira, veio a público, em 1926, Contos gauchescos escrito originalmente em 1912, passara-se uma década da morte de seu autor, o escritor pelotense João Simões Lopes Neto (1865 – 1916).
No clássico da literatura sul-rio-grandense, as andanças de Blau Nunes são relembradas ao redor do fogo de chão. Seus olhos já cansados do tempo e a memória aguçada pela mesma temporalidade que o separa do frescor da idade são o mote para um narrador que toma a palavra e anuncia o velho tropeiro que, em idade avançada, conta seus causos aos convivas.
Nas reminiscências da mocidade, o vivido e o imaginado vêm à tona de mistura, no compasso e desfilar da cuia que passa de mão em mão, na roda de chimarrão. Na retina, mais do que o churrasco que pinga na brasa, Blau traz gravado, entre rixas, brigas de faca, jogos e amores desfeitos um travo de lágrima que, a despeito do semblante enrijecido, teima em cair.
“E entrou o sol; ficou nas alturas um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal; depois o lusco-fusco; depois; cerrou a noite escura; depois, no céu, só estrelas…, só estrelas…”.
Da cor local emana o universo fundador do Pampa gaúcho. A vastidão dos campos a perder de vista mesura-se no trotear das patas do cavalo. Os grandes espaços favorecem as tropeadas e o laçar do gado em cancha reta, tão ao gosto do homem do campo, (“Correr eguada”, “Penar de velhos”). O Pampa, essa terra entre o mar e o rio da Prata, nos idos de 1835, não se quer Brasil. A república do charque se faz a lances de espada e golpes de adaga desferidos pelo gaúcho: homem bruto, de cutelo, tutano e verdades absolutas, mas mui leal, honrado, verdadeiro, digno da confiança dos patrões e estanceiros (“Trezentas onças” ,“O duelo de Farrapos”).
O gaúcho luta soberano ao lado do general Bento Gonçalves, insurgido contra o Império brasileiro, na Guerra dos Farrapos, cenário propício para cantar os feitos rio-grandenses, segundo a pesquisadora Regina Zilberman (1980), e contra o castelhano, na Guerra do Paraguai (“Chasque do Imperador”).
No discurso de Blau, o herói andarilho, sem eira nem beira, do qual ele é a encarnação, compartilha a mesma moral dos donos da terra. Em seu âmago prima a Liberdade – palavra estampada na bandeira do Rio Grande do Sul – ao lado das máximas Igualdade e Humanidade. Esta última, eco do positivismo transmutado da longínqua França pelo ideário dos poucos “letrados” da terra. Algo do sentido libertário está também na relação das personagens de Simões Lopes Neto com o estrangeiro, sobretudo o habitante da fronteira, onde o Pampa gaúcho se une ao uruguaio e ao argentino.
Nos Contos gauchescos, não são raras as referências ao castelhano olhado de soslaio, arranjador de barulhos (“Deve um queijo!…”), “meio espanhol meio gringo, mas mui jeitoso para qualquer arreglo que cheirasse à plata” (“Jogo do Osso”, “O Contrabandista”).
A íntima relação do Homem símbolo do Rio Grande do Sul com a natureza se materializa em seu apreço pelos animais, sobretudo o cavalo e o cachorro, companheiros inseparáveis nas tropeadas. O gaúcho é, então, um centauro dos pampas em simbiose com o próprio animal que ele monta (“Batendo orelha!…”, “Juca Guerra”).
“Não há nada como tomar mate e correr eguada!”
O valor enérgico desse homem reverbera naquilo a que João Pinto da Silva nomeia em sua História da literatura do Rio Grande do Sul (1924) como o “espetaculoso orgulho guasca”, espécie de narcisismo transplantado do espanhol, povo mais íntimo do sulino que o português. Ao mesmo tempo, a firmeza, a fé católica de herança jesuítica, e a rigidez de gestos abalam-se nos conflitos amorosos perpassados pelas figuras de mulher. Os amores, sejam plácidos ou torrentes, transfiguram o caráter do homem do campo, acostumado a toda suerte de rudezas (“O negro Bonifácio”, “No manantial”, “Melancia – Coco Verde”, “O ‘menininho’ do presépio”).
O leitor menos acostumado à fala do Rio Grande do Sul estranhará, por certo, o vocabulário empregado na obra que segue. E não poderia ser diferente porque nas paragens do sul fala-se um quase dialeto derivado mais da fronteira platina que do português brasileiro. A esse linguajar Simões Lopes Neto não desprezou. Antes, o incorporou em sua literatura, de sorte que aí se tem uma das particularidades fundamentais da escrita regionalista, um universo linguístico particular.
Que a prosa do autor pelotense esteja registrada em contos e não em versos é mote para o exame da embrionária literatura sul-rio-grandense entre os séculos XVIII e XIX, que ressignifica, transversal e regionalmente, os resquícios do indianismo romântico de José de Alencar e Gonçalves Dias, a essa altura, já passadistas no centro do país.
Entretanto, adverte-se aos mais ávidos por tomar partido tanto dos Contos gauchescos como do conjunto das produções literárias de Simões Lopes – incluindo Cancioneiro Guasca, Lendas do Sul e Casos do Romualdo –, que tomá-las em paralelo e como desdobramento regional da vertente indianista, equivale a suplantar as particularidades que a definem, desconsiderando tanto as singularidades do microcosmo gaúcho como sua relação com a literatura regionalista do restante do país.
Para além do exame das minúcias prevalece o Homem, a Terra e o Pampa em suas características pitorescas, embalados pelo cantar solitário do gaúcho, naquilo que os versos levam ao coração:
“Quem canta refresca alma,
Cantar adoça o sofrer;
Quem canta zomba da morte:
Cantar ajuda a viver!…”
* Tainara Quintana da Cunha é doutora em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Membro do Conselho editorial da E-Liber. Dedica-se à escrita narrativa e arrisca uns versos simples; o texto em destaque foi publicado como prefácio de edição de Contos gauchescos, de Simões Lopes Neto.
Contato: tainaraquintana24@gmail.com
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Ficha técnica:
Nome: Contos gauchescos.
Autor: Simões Lopes Neto.
Editora: E-Liber.
Número de Páginas: 302.
Ano de Publicação: 2022.
Formato: Pocket.
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